Proferido na Capela Real de Lisboa em 1655, o “Sermão
da Sexagésima” é um dos mais importantes sermões de Pe. Antônio
Vieira. Grande orador, ele mesclava sua formação jesuítica com a
estética barroca, fazendo de seus sermões a expressão máxima do Barroco em
prosa sacra e um dos principais meios de difusão da ideologia e da literatura
da Contra-Reforma.
O sermão
desenvolve a temática religiosa e, ao mesmo tempo, predomina nele uma das
características do estilo
barroco: o conceptismo, visto que
sua principal preocupação é o conteúdo, é a discussão da arte de persuadir.
Para tanto faz uso da metalinguagem: Vieira reflete sobre o poder da arte de
pregar por sermões ao mesmo tempo em que está proferindo um sermão. Para isso o
pregador se vale de analogias, comparações, metáforas, o mesmo estilo
de pregar de Jesus, que consistia em utilizar correspondências alegóricas, de
conhecimento geral, para que seu discurso seja assimilado e compreendido de
forma prática.
Além do
estilo de pregar, Vieira incorpora também em seu sermão algumas metáforas já
utilizadas por Jesus, como a da semeadura, a semente de trigo, a pedra e o
espinho que representam, em sua totalidade, um significado mais amplo:
referem-se à semeadura religiosa e a conversão das pessoas ao catolicismo, que
havia perdido fiéis para a Reforma
Protestante.
Inicialmente,
Vieira questiona o porquê da Palavra de Deus “fazer pouco fruto“. Como é comum
nos sermões, o pregador faz uso de perguntas que ele mesmo responde, recurso
que permite conduzir o raciocínio lógico do ouvinte. Ele atribui a este
questionamento três possibilidades de resposta:
as falhas podem ser do pregador, do ouvinte ou de Deus.
Na busca de
encontrar a resposta de seu questionamento, o pregador apresenta sua alegoria, que
esquematizamos da seguinte maneira:
Para que uma alma se converta:
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Pregador – apresentar a doutrina, persuadindo.
Ouvinte – compreender a mensagem.
Deus – permitir a compreensão
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Para o homem ver-se a si mesmo:
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Olhos – para enxergar
Espelho – para refletir sua própria imagem
Luz – iluminar o ambiente para que se veja.
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Analisando
os dois esquemas, percebe-se a relação entre eles: os olhos correspondem ao
ouvinte, que entra com o conhecimento; o espelho corresponde ao pregador que
entra com a doutrina (ele mesmo deve ser o “exemplo”, o modelo a ser seguido –
de nada adianta um discurso sem a prática de quem o profere); a luz corresponde
a Deus que, através da graça, ilumina o entendimento do ouvinte.
Na busca de
identificar de quem é a “culpa” pelo “pouco fruto da Palavra de Deus”, o
pregador inocenta de imediato, Deus, utilizando para isso um argumento de fé:
“Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino”. O mesmo Concílio de
Trento, que deu origem ao movimento da Contra-Reforma.
Sendo Deus inocentado,
a culpa passa a ser ou do pregador ou do ouvinte. Vieira utiliza, neste caso, a
alegoria do trigo mesclando com a parábola do semeador proferida por Jesus (S.
Mateus: 13), explicando que se a semente não vinga, quando semeada, não é por
causa da qualidade da semente, mas do ambiente: os espinhos e pedras no solo. A
semente representa a Palavra de Deus; os espinhos correspondem aos que são maus
ouvintes, que só se preocupam em criticar os outros e receber elogios; as
pedras representam aqueles que endurecem o coração, rejeitando a Palavra de
Deus. Para estes, até mesmo “quando as setas são mais agudas, tanto mais
facilmente se despontam nela”.
Fechando
este raciocínio, o pregador afirma que o “lavrador do Evangelho” bem poderia
preparar a terra, retirando os espinhos e as pedras, mas não o fez para provar
a “tamanha força da divina palavra que, sem cortar nem despontar espinhos,
(...) sem arrancar nem abrandar pedras”, a semente é capaz de brotar. “Mas virá
tempo em que as mesmas pedras o aclamem e esses mesmo espinhos o coroem.” Aqui
ele introduziu uma analogia com duas passagens bíblicas: A entrada triunfal de
Jesus em Jerusalém (S. Lucas, 19:40), “se estes se calarem, as pedras clamarão”
e a Via-sacra, percurso feito por Jesus antes da
crucificação (S. Mateus, 27: 29), “e, tecendo uma coroa de espinhos,
puseram-lha na cabeça”. O surpreendente nestas duas passagens é como Vieira nos
dá uma nova visão ante esses dois elementos: diante do “Semeador do Céu”, as
pedras se amolecem para homenageá-lo e os espinhos se envergam para lhe fazer
coroa. Assim, o pregador descarta a atribuição da culpa pelo pouco efeito da
Palavra de Deus aos ouvintes.
Vieira, de
maneira tão criativa e poética, atribui a culpa toda e exclusivamente ao
pregador: “por culpa nossa”, como ele mesmo afirma. Levando em consideração o
esquema que construímos com base em suas analogias, inferimos que isso se deve
ao fato de que os pregadores não estão mais convencendo seus ouvintes da
veracidade de sua doutrina, seja por sua ilogicidade, seja por ser um discurso
vazio, hipócrita, resumindo no “Fazei o que eu digo, mas não o que eu faço”.
Fontes de
pesquisa da autora: VIEIRA, Antônio. Sermões. IN: Eugênio Gomes, org.
6 ed. Rio de Janeiro, Agir, 1972, p. 94-9.